Saiu na imprensa: Dois anos após reintegração, Pinheirinho vive abandono e vê nascer 'cracolândia'

16/5/2014 - Às margens da Estrada do Imperador, em São José dos Campos, interior de São Paulo, um jovem viciado em crack está sentado de cócoras, comendo arroz velho em uma bacia suja, enquanto diz palavras desconexas. Ele e outros usuários persistem no local em barracas improvisadas do lado de fora dos muros que cercam o terreno de Pinheirinho. O mato que cresce ali há dois anos ainda não escondeu as árvores frutíferas, plantadas pelos antigos moradores da ocupação, no bairro Campo dos Alemães, na zona sul da cidade. As marcas dos carros incendiados e das bombas de
gás lacrimogêneo também continuam no asfalto. O que antes era um bairro irregular, com igrejas e comércios, hoje é um descampado vigiado dia e noite por homens em motocicletas, com uma minicracolândia em seu entorno.

Em 22 de janeiro de 2012, a situação dos moradores de Pinheirinho virou assunto na imprensa em todo o Brasil. Considerada por muitos como uma ação desastrosa dos governos municipal e estadual, a reintegração de posse deixou vários feridos, um morto e milhares de desabrigados. Na época, a operação foi criticada por entidades do País. A Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americanos (OEA) também denunciaram violações de direitos humanos.

Pires lembra bem daquele dia. Era uma manhã de domingo e ele havia saído por volta das 5 horas para buscar a mulher na fábrica onde trabalhava como auxiliar de limpeza. Ao voltar para casa, eles se depararam com um cenário de guerra e foram proibidos de entrar no terreno para procurar os três filhos. A família só conseguiu se reencontrar às 14 horas, no acampamento improvisado no centro poliesportivo do bairro, que acolheu os desabrigados. "A minha casa foi derrubada com tudo dentro, não consegui pegar nada. Eu tinha um carro velho na porta que a polícia tocou fogo", relata.

A auxiliar de serviços gerais, Rosilene Aparecida do Nascimento, de 44 anos, também guarda marcas do dia em que perdeu sua casa. Apenas com documentos e a roupa do corpo, a mãe solteira pegou as três filhas e fugiu às pressas do antigo Pinheirinho. Ao correr para ajudar uma amiga, caiu e cortou a perna profundamente. "Eles (policiais) arrombavam nossas portas, não pediam licença. Perdi tudo. Fogão, roupa que eu ainda estava pagando", lamenta. Com a ajuda do aluguel social de R$ 500, benefício concedido pelos governos municipal e estadual, ela conseguiu complementar a renda e encontrar uma casa no Campo dos Alemães que coubesse no orçamento, mas a situação deve se complicar até a liberação das novas moradias em 2015. "O aluguel vai aumentar neste ano. Se eu pudesse, mudaria hoje mesmo para a minha casinha. Não vejo a hora de ter meu canto."

Abaixo, vídeo produzido pela TV Estadão sobre a atual situação do Pinheirinho




Ainda na Justiça. Mais de mil processos cíveis e pelo menos 12 de crimes supostamente cometidos durante a desocupação continuam em aberto na Justiça. Pela Polícia Militar, segundo informações da assessoria de imprensa, foram instaurados três inquéritos e dois procedimentos disciplinares. Um dos casos mais emblemáticos, que foi registrado em vídeo - de um senhor espancado por três policiais -, resultou em punições administrativas. Há denúncias de violência também contra a Guarda Municipal de São José dos Campos, que envolvem agressão e assédio sexual. Durante a reintegração de posse, 2 mil policiais da Tropa de Choque e da Rota de São Paulo utilizaram carros blindados. Dois helicópteros Águia da PM também estiveram no local. Durante o confronto com os moradores, que também resultou em veículos queimados, foram utilizadas armas letais e não letais.

"Tiraram famílias que viviam aqui muito bem. E hoje este terreno não tem nenhuma função social", reclama o advogado das famílias de Pinheirinho, Toninho Ferreira. Segundo ele, mesmo com a construção no Putim, a Associação de Moradores de Pinheirinho continuará lutando na Justiça pela desapropriação da área de 1,3 milhão de km² que pertence à massa falida da empresa Selecta, do investidor Naji Nahas. Depois do despejo, o local chegou a ser leiloado para cobrir dívidas de Nahas com a prefeitura de São José dos Campos, mas a possível venda foi suspensa no Judiciário.

O antigo terreno da ocupação está abandonado, em meio a uma área residencial onde cresce o número de condomínios no entorno. "Nossa luta continua. Aqui deveriam ser construídas moradias populares e o hospital regional da cidade, que já tem projeto, mas não local para ser erguido", afirma Ferreira. A reportagem tentou entrar no local, mas foi proibida pelos vigias que fazem rondas diaramente e ficam em uma guarita onde era a antiga praça de assembleias de Pinheirinho. Mesmo quando perguntados sobre para quem trabalhavam, os homens se limitaram a dizer: "Não posso falar nada. Não sei de nada".

De acordo com a prefeitura, a Selecta já foi notificada e multada por causa da sujeira e do mato que se acumula na área. Já sobre a minicracolândia, a assessoria de imprensa informou que "a Guarda Municipal e a Polícia Militar realizam rondas rotineiras no local. Equipes de assistentes sociais também realizam um trabalho permanente de orientação e apoio social, oferecendo ajuda para os que desejarem tratamento contra dependência química". Moradores do bairro contam, no entanto, que a medida não tem inibido a permanência e uso de entorpecentes no lado de fora do terreno.

Outras ocupações. Em casos extremos, sem-teto do Pinheirinho acabaram entrando em outras ocupações irregulares da região, como o catador de lixo Antônio Calixto da Silva, de 78 anos. Sentado em um sofá sob o chão batido de seu pequeno barraco de madeira, seu Antônio guarda boas lembranças dos anos em que viveu em Pinheirinho. Ele tinha um bar no bairro e complementava a renda com a coleta de lixo reciclável. Com a reintegração de posse, sua casa foi destruída e pouco sobrou. Até mesmo seus documentos se perderam, e ele não conseguiu se cadastrar para receber o aluguel social na época. "Meu bar tinha sinuca, freezer e geladeira. Tudo sumiu", lamenta.

O idoso não encontrou outra saída senão se juntar com outras pessoas e montar moradia às margens de um morro. A comunidade que ele atualmente mora, chamada Menino Jesus, está ali, ao lado da Rodovia Presidente Dutra, há cerca de 15 anos, mas também corre o risco de desaparecer. Está em uma área de risco de desabamento e há uma liminar de reintegração de posse na Justiça. O destino das mais de cem famílias que moram no local está nas mãos da prefeitura, que pretende realocá-los em um conjunto habitacional que será construído até o ano que vem na cidade. Enquanto isso, seus moradores vivem em meio ao esgoto aberto e lixo acumulado nas encostas do terreno montanhoso.

Seu Antônio e sua filha de 3 anos são uma das 11 famílias de Pinheirinho que moram na Comunidade Menino Jesus. Assim como ele, outros brigam na Justiça para serem reconhecidos como antigos moradores da ocupação e terem o direito a uma casa no Pinheirinho dos Palmares. No Campo dos Alemães, o catador de lixo vivia ao lado de outra filha, a dona de casa Maria Sandra da Silva, de 29 anos. Ela e o marido Raniel Barreira Santana, de 28 anos, também não conseguiram alugar uma nova casa depois da reintegração de posse e foram parar na favela com o pai.

Diferentemente de seu Antônio, Sandra conseguiu se cadastrar na assistência social e poderá morar no Pinheirinho dos Palmares. Hoje, ela vive com os seis filhos pequenos e a mãe, deficiente visual, em um barraco de madeira próximo do pai, mas está ansiosa, assim como os outros ocupantes, para mudar esta realidade e construir sua casa com a ajuda do marido, que é ajudante de pedreiro. "Se Deus quiser vamos pra lá. Seja em 2015 ou 2016, eu estarei lá", conta otimista.



Celso Filho - O Estado de S.Paulo - 14 de maio de 2014
Fotos: Sérgio Castro - Estadão


Link do vídeo

http://tv.estadao.com.br/videos,dois-anos-apos-reintegracao-violenta-pinheirinho-vive-abandono-e-ve-nascer-cracolandia,233896,250,0.htm