Cinco teses sobre o desempenho da resistência armada em Gaza


11/8/2014 - Em meio a usual matança israelense na Faixa de Gaza, está surgindo algo de novo no front. Nunca, na história da luta armada palestina, um grupo guerrilheiro impôs tantas baixas a Israel como faz o Hamas. 

Durante a última grande ofensiva israelense na Faixa, que durou entre os dias 27 de dezembro de 2008 e 18 de janeiro de 2009, para além dos 1400 palestinos mortos, apenas 10 soldados de Israel cariam no campo de batalha. Destes, quatro morreram por conta de fogo amigo. 

Segundo o relatório do International Crisis Group durante a guerra de então, o Hamas "na maior parte do tempo evitou confrontos diretos com as tropas israelenses". O documento cita até mesmo um ex-ministro de relações exteriores de Tel Aviv, que afirma "não houve guerra. O Hamas sentou nos seus bunkers e apenas saiu de lá quando tudo se acabou"1. 

Hoje, a realidade é outra. Em menos de um mês, foram 64 soldados israelenses mortos. Os foguetes do Hamas, que antes se restringiam ás regiões em torno da faixa, também passaram a ter um poder de fogo muito maior. Eles quase atingiram a pista do aeroporto internacional Bem Gurion, parcialmente paralisando por alguns dias o complexo civil-militar. 

As novidades militares no campo de batalha não implicam, de forma alguma, que o Hamas constitua uma alternativa de direção ao povo palestino ou qualquer ameaça a existência do estado de Israel. O grupo islâmico, que dirige a faixa de Gaza com mãos de ferro, reprimindo brutalmente qualquer oposição ao seu governo, possui vínculos orgânicos com estados burgueses contrarrevolucionários como o Qatar e o Irã, além da reacionária Irmandade Muçulmana do Egito. Vale lembrar que a Irmandade, apesar de sua proximidade com o Hamas, atuou durante todo seu governo para garantir os acordos internacionais entre Egito e Israel, que legitimam a destruição e colonização da Palestina. 

Porém, por conta da nova conjuntura político-militar na faixa, cujo Hamas foi importante catalizador, Israel não se atreveu a avançar para o centro de Gaza, como pedia a extrema-direita sionista, porque para fazer isso teria que matar dezenas de milhares de palestinos e perder algumas centenas de homens, muito acima do que as condições políticas permitiam. Ou seja, a grande vitória do Hamas é que não deram a oportunidade do exército israelense avançar facilmente, a primeira vez em um enfrentamento desse tipo e escala em território palestino. 

À luz dessas novidades, seguem abaixo um conjunto de teses sobre o desempenho da resistência palestina. 

1 - A revolução egípcia de 2011, especificamente o período entre a derrubada de Mubarak e a queda do governo da Irmandade Muçulmana, em 3 de julho de 2013, mudaram, de fato, a conjuntura político-militar na Faixa de Gaza. Durante estes dois anos e meio, um verdadeiro mar de tuneis se multiplicou entre as fronteiras dos dois países, rompendo o bloqueio israelense ao enclave palestino. 

Logo após o inicio da revolução, o governo militar que assumia o comando do Cairo perdeu o controle da península do Sinai, que liga o Egito à Palestina. Com a península na mão das tribos beduínas, os tuneis que ligavam Gaza ao mundo proliferaram. Pouco dessa realidade mudou sob o governo da Irmandade Muçulmana, organização egípcia cujo braço palestino é o Hamas, que até 1967 era parte integral da irmandade. Segundo o Major General israelense Yaakov Amidror, durante o governo da Irmandade os túneis tornaram-se “uma verdadeira rodovia”2. 

Para além do armamento e material bélico que entrou na faixa, a resistência ganhou uma oportunidade de ouro para melhor formar seus quadros. Dirigentes militares e engenheiros do Hamas e da Jihad Islâmica, que nunca antes haviam saído da pequena Gaza, tiveram a oportunidade de formarem-se militarmente, principalmente no Irã – cuja cooperação com a vertente islâmica da resistência palestina segue tendo grande peso. Para além da compra de misseis e foguetes, os palestinos de Gaza, por conta de intercâmbios científicos, adquiriram a capacidade técnica para produzi-los. 

Em 2012, durante uma curta guerra entre palestinos e israelenses que deixaram 150 palestinos mortos, os principais foguetes do Hamas eram de fabricação iraniana, como o Fajr-5, que possui 75 km de alcance. Hoje quase todos os foguetes utilizados pelo Hamas são feitos pelos palestinos. O R-160, com 160 km de alcance, é um deles. O foguete, cujo nome é uma homenagem a Abdel Aziz al-Rantisi, cofundador do Hamas morto em 2004, é de modelo chinês, mas agora possui uma cópia palestina. Até mesmo drones de fabricação gazense, como o A1A, para reconhecimento de território, e o A1B e A1C, utilizados para operações de ataque, estão sendo utilizados contra Israel.3 

Desde a chegada do General Abdel Fatah Al-Sisi a presidência do Egito, a grande maioria dos tuneis na fronteira foram fechados. Mas o estrago já havia sido feito. Segundo depoimento de um comandante do braço armado do Hamas para o jornal egípcio Ahram Weekly: 

As brigadas não perderam um só segundo [antes da chegada de Sisi]. Foi a era dourada das armas da resistência. Elas consistiam essencialmente de armas russas vindas do Irã ou de outros lugares, e até mesmo do mercado que existe em ambos os lados da fronteira. Apesar de as fronteiras estarem agora sob controle rígido, as armas são abundantes. O fechamento dos túneis diminuiu a constância das armas, mas não as encerrou por inteiro. A chance de fazer dinheiro faz com que os traficantes sejam muito criativos no tráfico das mercadorias. (...) 

Tínhamos clareza que a situação no Egito após a revolução não duraria, e que a Irmandade Muçulmana não ficaria no poder por mais de um ano, e muito menos iria cumprir o mandato. Tínhamos certeza disto e sabíamos que tínhamos que aproveitar ao máximo este período para garantir a chegada de armas e munições.4 

2 - Se por um lado a revolução egípcia em muito contribuiu para melhor localizar o Hamas em sua luta contra Israel, a revolução síria e o apoio do Hamas ao levante popular abalou apenas de forma secundária as relações internacionais do grupo. Os que apostaram em um isolamento dos islamistas, perderam. 

Ao defender a derrubada de Bashar Al Assad, o relacionamento dos palestinos com o Irã, principal mecenas do genocídio sírio, se esfriou. O mesmo se aplica ao Hezbollah. Mas dado que a brigada Izedin Al Qassam, braço armado do Hamas, possui uma relação de autonomia relativa do polit-bureau da organização, laços importantes foram mantidos entre todos ambos os lados.5 

Além do mais, a vantagem causada pela abertura dos túneis fez crescer tanto a capacidade de comunicação do Hamas que ela secundarizou qualquer perda causada pelo seu apoio à revolução síria. Em soma, a “Primavera Árabe” é o principal combustível que abastece a resistência em Gaza. 

3 - Ao contrário de 2008-09, durante a atual guerra Israel perdeu uma de suas principais armas, o efeito surpresa. O ataque israelense pode ser previsto pela resistência, contribuindo positivamente à moral das guerrilhas palestinas. 

Entre a dura onda de repressão aos palestinos na Cisjordânia e os bombardeios a Gaza, passaram-se semanas. Mais que o suficiente para o Hamas se preparar. Esta realidade se opõe frontalmente aos eventos de 2008/9, quando logo nos primeiros minutos da guerra, dezenas de alvos meticulosamente selecionados há meses foram bombardeados de uma só vez por Israel. Tudo isto em um curtíssimo intervalo de tempo. 

O elemento da surpresa, inclusive, muitas vezes atuou a favor dos palestinos. Seus foguetes, tuneis e drones repetidamente surpreenderam a população e a imprensa israelense, abalando causando um mal estar geral no país. 

Talvez esta seja a principal diferença entre 2009 e 2014; passou-se a impressão, pela primeira vez, de que os palestinos conseguiriam, ou ao menos estavam tentando com algum sucesso, disputar os tempos político-militares da guerra. 

4- Salto organizacional da resistência 

O Hamas também mudou inteiramente sua estrutura interna, dando um grande salto organizacional. Segundo um dirigente da brigada Izz Al Din Al Qassam, “nós nos beneficiamos das escolas de combate iraniana, síria e do Hezbollah, além de termos finalmente formulado a [escola] independente da Qassam, alinhada à nossa situação e que nos da capacidade para responder aos desafios dos inimigos.”6 

Diferentemente de 2009, a brigada Qassam funciona hoje como um pequeno exército, com por volta de 7.000 soldados permanentemente mobilizados que recebem um soldo de 1.500 reais por mês. Há por volta de outros 20.000 reservistas em potencial, prontos para serem convocados pela resistência. 

O salto organizacional do Hamas, cuja organização interna está cada vez mais similar ao Hezbollah libanês, representa um novo momento na luta militar palestina. Tal fato é assimilado pelo principal adversário palestino do grupo islâmico, o Fatah. Segundo testemunho de um importante Major-General da Autoridade Palestina, dado em condições de anonimato a principal revista militar norte-americana, IHS Jane “As baixas causadas pela brigada Qassam desde o início desta operação... são maiores que tudo que fizemos em todas as guerras da PLO [contra Israel] no sul do Líbano.”7 

Não só o Hamas se profissionalizou, como ele conseguiu, talvez pela primeira vez em sua história, guerrear contra Israel sem perder, ao menos até agora, seus principais dirigentes militares. Em 2012, o principal comandante militar do grupo, Ahmed Jabari, foi assassinado por Israel. Durante atual guerra, incomparavelmente mais feroz, Israel não matou um único dirigente do alto comando do Hamas. 

Segundo o mais popular jornal de Israel, Yedioth Ahronoth, “Ao contrário das operações anteriores, o Hamas preparou planos de combate e protocolos para seis comandos regionais em toda faixa, fazendo com que a necessidade de ordens diretas se tornassem quase inteiramente obsoletas, salvado os principais comandantes de inúmeros riscos que os exporiam a ira israelense.”8 

Outra novidade é que pela primeira vez os grupos menores que integram a resistência em Gaza, como a Jihad Islâmica e a Frente Popular Pela Libertação da Palestina, não mais atuam em competição com o Hamas, mas em colaboração. A Jihad Islâmica, segunda força política e militar da faixa, tem dividido uma serie de tarefas e informações com o Hamas, facilitando assim a luta conjunta contra Isael. 

 5 – maestria nos túneis Tão importante quanto os foguetes lançados contra Israel, pela primeira vez em sua história, o Hamas, copiando as táticas do Hezbollah no sul do Líbano, incorporou em seu arsenal estratégico a construção de uma impressionante rede de túneis. 

Para além daqueles que conectam Gaza ao Egito, outros dois tipos de túneis, muito mais sofisticados e resistentes, tem se desenvolvido na faixa ao longo dos últimos anos. 

Primeiramente, há os “túneis de ataque”. Eles são caminhos subterrâneos que permitem a guerrilha palestina entrar no território israelense sem ser notado pelo exército inimigo. São túneis de poucos quilômetros de extensão (normalmente dois ou três quilômetros) que desembocam em zonas rurais próximas a alvos militares. Tais passagens subterrâneas permitiram ao Hamas furar a retaguarda israelense, pegando os soldados sionistas de surpresa. Por conta deles, gaza tem sido descrito como um “front de 360 graus”9, em que a noção de uma vanguarda e retaguarda caíram por agua abaixo. 

Ainda mais importantes que os “túneis de ataque”, há um enorme complexo subterrâneo dentro da própria Gaza, que combina, túneis, bunkers e armazéns. Eles vêm sendo descritos na imprensa mundial como “Gaza Underground”. São uma rede consistente de conexões pelo território palestino cuja real extensão parece ser muito maior que imaginavam os israelenses. 

Alguns destes túneis cumprem um papel militar ofensivo. Assim como no Líbano, eles funcionam como plataformas para o lançamento de foguetes contra Israel que são dificilmente monitorados pelos satélites israelenses. Em poucos minutos, os misseis saem dos tuneis, atacam o inimigo e logo depois toda a sua estrutura de lançamento desaparece para dentro do chão, despistando assim a força aérea de Israel. Repete-se, portanto, a tática do Hezbollah da guerra contra Israel em 2006. 

Outros túneis funcionam como conectores dentro da própria faixa, ligando regiões mais protegidas de Gaza a outras mais vulneráveis. Tais passagens permitem a resistência maior dinamismo na sua movimentação nos campos de batalha, pegando os soldados de Israel que ocupavam as regiões fronteiriças a cidade de Gaza, como Shujayah, pela retaguarda. 

Os túneis da “Gaza Underground” são talvez a melhor síntese da nova realidade político-militar da faixa. São um produto das ligações subterrâneas entre Egito e Palestina, das técnicas adquiridas pelo Hamas junto a seus aliados e da profissionalização da luta armada em Gaza. Eles trazem talvez a mensagem mais poderosa da resistência palestina à colonização de suas terras perpetradas por Tel Aviv; enquanto os israelenses constroem muros, os palestinos cavam túneis.

Por Aldo Sauda

1 Finkelstein, 2010